terça-feira, janeiro 31, 2006

Ah pois é!

"Quero fazer o elogio do amor puro. Parece-me que já ninguém se apaixona de verdade. Já ninguém quer viver um amor impossível. Já ninguém aceita amar sem uma razão. Hoje as pessoas apaixonam-se por uma questão de prática.Porque dá jeito. Porque são colegas e estão ali mesmo ao lado.Porque se dão bem e não se chateiam muito. Porque faz sentido.Porque é mais barato, por causa da casa. Por causa da cama. Por causa das cuecas e das calças e das contas da lavandaria.
Hoje em dia as pessoas fazem contratos pré-nupciais, discutem tudo de antemão, fazem planos e à mínima merdinha entram logo em "diálogo".
O amor passou a ser passível de ser combinado. Os amantes tornaram-se sócios. Reúnem-se, discutem problemas, tomam decisões. O amor transformou-se numa variante psico-sócio-bio-ecológica de camaradagem. A paixão, que devia ser desmedida, é na medida do possível. O amor tornou-se uma questão prática. O resultado é que as pessoas, em vez de se apaixonarem de verdade, ficam "praticamente" apaixonadas.
Eu quero fazer o elogio do amor puro, do amor cego, do amor estúpido, do amor doente, do único amor verdadeiro que há, estou farto de conversas, farto de compreensões, farto de conveniências de serviço. Nunca vi namorados tão embrutecidos, tão cobardes e tão comodistas como os de hoje.
incapazes de um gesto largo, de correr um risco, de um rasgo de ousadia, são uma raça de telefoneiros e capangas de cantina, malta do "tá tudo bem,tudo bem", tomadores de bicas, alcançadores de compromissos, bananóides, borra-botas, matadores do romance, romanticidas. Já ninguém se apaixona? Já ninguém aceita a paixão pura, a saudade sem fim, a tristeza, o desequilíbrio, o medo, o custo, o amor, a doença que é como um cancro a comer-nos o coração e que nos canta no peito ao mesmo tempo?
O amor é uma coisa, a vida é outra. O amor não é para ser uma ajudinha. Não é para ser o alívio, o repouso, o intervalo, a pancadinha nas costas, a pausa que refresca, o pronto-socorro da tortuosa estrada da vida, o nosso "dá lá um jeitinho sentimental". Odeio esta mania contemporânea por sopas e descanso. Odeio os novos casalinhos. Para onde quer que se olhe, já não se vê romance, gritaria, maluquice, facada, abraços, flores. O amor fechou a loja. Foi trespassada ao pessoal da pantufa e da serenidade.
Amor é amor. É essa beleza. É esse perigo.
O nosso amor não é para nos compreender, não é para nos ajudar, não é para nos fazer felizes. Tanto pode como não pode.
Tanto faz. É uma questão de azar. O nosso amor não é para nos amar, para nos levar de repente ao céu, a tempo ainda de apanhar um bocadinho de inferno aberto.
O amor é uma coisa, a vida é outra. A vida às vezes mata o amor. A"vidinha" é uma convivência assassina. O amor puro não é um meio, não é um fim, não é um princípio, não é um destino. O amor puro é uma condição. Tem tanto a ver com a vida de cada um como o clima. O amor não se percebe. Não dá para perceber. O amor é um estado de quem se sente. O amor é a nossa alma. É a nossa alma a desatar. A desatar a correr atrás do que não sabe, não apanha, não larga, não compreende. O amor é uma verdade. É por isso que a ilusão é necessária.
A ilusão é bonita, não faz mal. Que se invente e minta e sonhe o que quiser. O amor é uma coisa, a vida é outra. A realidade pode matar, o amor é mais bonito que a vida. A vida que se lixe.
Num momento, num olhar, o coração apanha-se para sempre. Ama-se alguém.
Por muito longe, por muito difícil, por muito desesperadamente. O coração guarda o que se nos escapa das mãos. E durante o dia e durante a vida, quando não está lá quem se ama, não é ela que nos acompanha - é o nosso amor, o amor que se lhe tem.
Não é para perceber. É sinal de amor puro não se perceber, amar e não se ter, querer e não guardar a esperança, doer sem ficar magoado, viver sozinho, triste, mas mais acompanhado de quem vive feliz. Não se pode ceder.
Não se pode resistir.
A vida é uma coisa, o amor é outra. A vida dura a vida inteira, o amor não. Só um mundo de amor pode durar a vida inteira. E valê-la também."

Miguel Esteves Cardoso

8 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Acho que ninguém diria melhor... nc tinha lido este texto.. excelente escolha :) Haverá amor puro?

fevereiro 04, 2006 1:26 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

...pois não haja duvida que é.ás vezes é mesmo preciso parar para ver que a vida não permite esse tipo de amor verdadeiro, e quando há, a puta da vida acaba por o destruir.Sempre.Ainda no outro dia me disseram "já reparaste bem que a maior parte dos casais que se sentam numa mesa de café mal se falam?Fica cada uma olhar para seu sitio.Qual é o interesse?Mais valia que estivessem cada um por seu lado a fazer uma coisa realmente interessante."Nunca tinha pensado nisso.E realmente a maior parte das minhas relações se fez em "cafezinhos"...o tempo que eu podia ter gasto a fazer qualquer coisa de realmente util.Que nervos.Que tempo de vida desperdiçado.Mas o que me irrita mesmo é saber que uma proxima relação que tenha, por muito que me esforce, acabará inevitavelmente, por seguir este padrão.É impossivel estar com uma pessoa e conseguir que a vida não se transforme numa rotina,num habito, e que o dia a dia seja vivido com essa paixão e esse entusiasmo todo com que nos brinda o autor do texto.É tudo muito bonito sim senhor.Todos acenamos que sim com a cabeça ao ler, e acreditamos que está pleno de razão.Mas a verdade é que nao há nada que se possa fazer para alterar isto, ou há?Tu podes me responder a isto?

fevereiro 11, 2006 9:06 da tarde  
Blogger kiko said...

Responder-te-ía de bom grado, se soubesse quem és... vá lá, identifiquem-se! Não custa nada ;)

fevereiro 12, 2006 4:01 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Frederico,não me parece queseja necessario saberes quem eu sou para me responderes a isto.Alias acho que tem pouca resposta possivel...Mas podes sempre tentar.

fevereiro 12, 2006 7:30 da tarde  
Blogger kiko said...

De facto tem pouca resposta... Acho que era só por curiosidade. Também foste tu a deixar o comentário do natal?

fevereiro 12, 2006 7:33 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Vê lá tu que fui.Devo ter gostado mesmo disto.

fevereiro 12, 2006 8:23 da tarde  
Blogger kiko said...

Não te levo nada a mal, de maneira nenhuma! O que eu digo não passa de opiniões, ou esboços de pensamentos. No caso deste texto, gostei de o ler, e decidi partilhá-lo. Nada mais... O amor não tem de ser isto. Ou outra coisa qualquer... cada um o sente de uma única forma, a sua! Mais uma vez, não passa da minha opinião. Obrigado pelo comentário... mourisca. :)

fevereiro 23, 2006 7:32 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

...o amor...? é eterno enquanto dura...vivam no da melhor maneira...:)

setembro 12, 2006 11:00 da tarde  

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